Depois da Tanzânia, nosso próximo país a ser visitado era o Malawi. E confesso que, antes de lá chegar, a primeira impressão deste país não foi tão boa não. Explico melhor: ao fazer a pesquisa sobre vistos necessários na África, descobri que o Malawi era o único país que exigia visto com antecedência para brasileiros. Quase todos os países africanos por que passamos exigem visto, mas, normalmente, é um “visa on arrival” que você paga uma quantia e entra no país. Puramente uma fonte de arrecadação para as incipientes economias da região. O Malawi não. Era necessário tirar um visto com antecedência. O pior era que o material disponível na internet era muito confuso e continha até informações conflitantes (em sites oficiais do próprio país!). Estávamos já na Tailândia e descobrimos que não havia nenhuma embaixada do Malawi nos países que passaríamos com exceção de Nova Delhi (onde teríamos 2 ½ dias) e Nairobi (3 dias).
A coisa estava ficando apertada.
E para complicar mais a guerra, a documentação aparentemente exigida era absurda. Por exemplo, precisaríamos enviar nossos extratos bancários dos últimos 3 meses – traduzidos para o inglês – para provar que tínhamos recursos suficientes para permanecer no país pelos 5 dias que lá passaríamos!!!
A coisa estava ficando complicada.
Mandamos um email para o High Commission do Malawi em Nairobi e Nova Delhi (High Commission é sinônimo de embaixada para os países que fazem parte do Commonwealth. Comunidade britânica da qual o Malawi, como ex-colônia, faz parte). De Nairobi, volta uma resposta que o email não era válido. De Nova Delhi, volta um email (detalhe: endereço diferente do email oficial do High Commission) simplesmente dizendo que nos dias que teríamos disponíveis em Delhi era feriado (na Índia ou no Malawi?) e para contactar um tal de Sr. Godwin Honde em um tal número de celular que tudo se resolveria.
A coisa estava ficando surreal.
Parecia mesmo um esquema em que, na melhor das hipóteses, pagaríamos por um visto falso e, na pior das hipóteses, seríamos assaltados. O que fazer?
Como na Índia tudo é complicado, pensamos que seria melhor tentar resolver a situação no Quênia em Nairobi.
No entanto, ainda na Índia, resolvemos arriscar e ligar para o número de celular informado no email. Para nossa surpresa, um simpático Sr. Honde disse que aparecêssemos na High Commission na 2ª feira próxima (iríamos embora da Índia no dia seguinte) com apenas uma foto, um formulário simples preenchido e com o dinheiro necessário que sairíamos com o visto naquele dia mesmo.
Pelo menos o telefone e endereço dado por ele eram os dados oficiais do High Commission.
Tudo parecia estar se resolvendo.
Pegamos um táxi em Nova Delhi e chegamos no endereço fornecido. Um sorridente Sr. Honde apareceu e pediu que esperássemos um pouco pois ele providenciaria uma carta dando o pré-visto para nós. Meio estranho, mas o motivo disso seria que a High Commission estava sem estoque do adesivo oficial do visto e, na fronteira, com essa carta, teríamos o visto propriamente dito sem problemas.
Pagamos USD 30 pela tal carta e partimos aliviados. Visto do Malawi resolvido. Ganhamos até um cartão de visita do simpático Sr. Honde. Até brincamos que a coisa mais tranquila e descomplicada da Índia teria sido o High Commission do Malawi.
Tudo resolvido? Só que não!
Na saída da Tanzânia, nosso guia reconfirmou se todos tinham o visto do Malawi. Curiosamente, 3 sul coreanos do nosso grupo também precisariam de um visto prévio para o Malawi, mas não tinham feito o procedimento. E agora? Fomos em frente, pois a coisa “se resolveria lá”. Pensamos que a velha “deixar uma cervejinha Malawiana” resolveria a situação. Para nossa surpresa, os coreanos tiveram apenas que preencher um formulário e tudo ok. Para nossa chateação, no nosso caso, pediram para preencher o formulário novamente (o mesmo que entregamos em Nova Delhi) e desprezaram completamente a carta que apresentamos. Ou seja, o procedimento e stress todo poderia ter sido evitado. Pagamos mais USD 75 cada um pelo bendito visto e entramos no país. 2 horas na fronteira.
Segundo nosso guia, tempo bem razoável pois já teria ficado mais de 3 horas em outras ocasiões com outros grupos.
Passado o perrengue do visto, adentramos o território do Malawi. Surpresa. A Tanzânia era um país riquíssimo e não sabíamos. A paisagem mudou completamente. A miséria era evidente. Estrada cheia de buracos, casas de pau a pique no meio do mato sem nenhuma eletricidade. Poucas aglomerações humanas. A cara da pobreza extrema. No meio desse cenário, uma coisa nos chamou atenção: todas as crianças tinham um olhar meigo e corriam em direção ao nosso caminhão nos brindando com simpáticos sorrisos e acenos de mão. Éramos bem-vindos.
Um outro Malawi se apresentava ali. Depois de mais de 14 horas na estrada, chegamos exaustos a nossa acomodação. Acomodação mais ou menos pois tínhamos sido alertados que as condições eram muito básicas e que provavelmente não haveria luz e apenas banheiros compartilhados. Qual não foi nossa surpresa quando entramos no nosso quarto, super básico sim, e percebemos que havia uma luz (bem fraca, mas era luz) e um banheiro só para nós. A água era até morna! Um funcionário local ficava 24 horas em frente a um tipo de forno, garantindo o fornecimento de lenha que pudesse esquentar a água. Nada como gerenciamento de expectativas! Como estamos aprendendo a viver com menos.
No dia seguinte fomos conhecer melhor o local. A localização era muito bonita, à beira do lago Malawi. Lago esse que dá nome ao país e cruza o mesmo de norte a sul. É enorme e na maioria das vezes não dá para enxergar o outro lado. Tinha chovido nos dias anteriores e a água estava escura porém a areia era bem fina e clara. Parecia mesmo uma praia de oceano. Depois ainda tivemos a sorte de ver um fenômeno muito raro sobre o lago. Um tornado!
De volta ao nosso hotel, depois descobrimos que, na realidade, esta acomodação era propriedade de uma ONG americana que desenvolveu o local para dar emprego e gerar renda para a população local.
Depois do café da manhã, fomos visitar a vila próxima de onde estávamos hospedados. Como umas nuvens negras estavam no horizonte, pegamos alguns guarda-chuvas no hotel e seguimos estrada de barro acima para ver as condições do local. Logo que iniciamos a caminhada, várias crianças nos cercaram encantadas com os guarda-chuvas. Elas gritavam: umbrella, umbrella, umbrella e apenas queriam usar os mesmos como brinquedos. Não tinham nada para brincar. Só poeira e pedra (e o lindo lago Malawi para tomar banho). A carência era total. Pegavam na nossa mão apenas para receber algum carinho. Os narizes escorrendo e várias doenças de pele.
Surpreendentemente, o local não tinha muita sujeira. Depois entendemos que o motivo era que a pobreza era tanta que até a capacidade de produzir lixo era limitada.
Mas a alegria das crianças era contagiante. Sorriam, gritavam, corriam, brincavam com os guarda-chuvas.
Sempre escoltados pelas crianças, fomos conhecer a escola da vila. Uns 50 ou mais alunos sentados no chão olhando para um quadro negro caindo aos pedaços. A professora tinha um olhar meigo e nos cumprimentou. Fomos também ao “hospital” local. Equipamentos de parto sem qualquer esterilização. Leitos sem colchão. Estavam felizes pois recentemente tinham conseguido trazer água corrente para o “hospital”. Ou seja, a tecnologia mais avançada do local era simplesmente água. Muito chocante.
E as crianças continuavam a sorrir.
E no Malawi eu chorei.
14 comentários sobre “E no Malawi eu chorei”
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Olá casal, antes de tudo parabéns pelo blog, acabei achando o blog pela mesma circunstancia hahaha. Estou a atravessar o continente africano e nesse exato momento estou nessa situação. Gostaria de so confirmar uma coisa ao ler as recentes informações, ao chegar nessa terra via solo é possivel obter o visto no valor de 75 certo?
E parabens pelos posts sobre esse continente pouco desbravado = )
Oi, Cainã.
Obrigado pelo comentário. Realmente a passagem pelo Malawi foi a mais complicada que tivemos. Teoricamente sim, você poderia pagar os USD 75 na hora e entrar. Mas isso muda bastante e tem realmente que checar como estão os procedimentos. Se puder tirar um visto com antecedência, melhor.
Marcelo: existem vários estudos antropológicos baseados no lixo produzido. Pobreza extrema gera pouquíssimo lixo! Mas com tudo isso há tanta riqueza nessas pessoas e tanto a aprender com elas, não? Muito impactante o seu relato!
Aprender por aqui é por osmose mesmo. Facílimo!
Uma baita experiência emocional. Esses olhinhos infantis são muito marcantes. Eu também choraria. Bjs
Foi um dos momentos marcantes da viagem sim, Iracema. Bjs.
Sem palavras Ce e Tacu, do lado de cá me deu vontade de abraçar estas crianças e cuidar delas, tão impotentes que somos diante das misérias do mundo.. Aqui temos também a grande pobreza nordestina, mas não se vê essa alegria, está simplicidade e pureza.
Experiencia mais que marcante, vai ficar tatuado na sua memória .
Vai ficar marcado sim. Pobreza é um tema difícil e até meio tabu. Mas realmente existe uma diferença entre os países que vai além do simples número do nível de renda. Por exemplo, a pobreza do Brasil, Índia e Malawi são completamente diferentes na minha opinião. O tema é complexo…
Olá meus amigos! Aqui são 4 e pouco da manhã e pra variar estou acordado. Que contraste! Que pureza! Quanta inocência! Como o simples e quanto o quase nada é capaz de nos comover tanto! Acho que estar diante de tantos sem coisa alguma, mas com muito mais alegria, tranquilidade e simplicidade que nós. Talvez o sentimento expressado pelo choro seja a comprovação de que a vida pode ser simples e ao mesmo tempo extremamente feliz. Um sorriso verdadeiro, desinteressado e repleto de carinho como daquelas crianças nos faz repensar o nosso modo de vida e agir para, ainda, rescrevermos uma história mais bela. Esse pedacinho de experiência já nos alerta para o que realmente têm real valor. Gostei muito e só tenho que agradecer por ter sentido um pouco do que vocês viveram lá! Um beijo carinhoso pra Celina é um abração pro Marcelo, o guia de sempre, mas agora também guia espiritual! Valeu, que a Força siga com Vocês!
Valeu, Roberto.
O Malawi estava realmente sem I adesivo do visto em vários países, como Moçambique. O adesivo era feito em uma casa da moeda em algum outro país, e eles estavam sem reservas, dólares para fabricar mais. As últimas viagens a trabalho foram com esta carta que pegávamos no High Comissioner e íamos a uma sala entravar e oegar o visto. O problema é que era uma multidão! o avião inteiro numa salinha apertada. Eles ficaram uns tempos sem dólares para importar gasolina, e portanto não se vê muitos carros circulando. Colônia inglesa é muito mais limpa, sem lixo, sempre com um jardim mesmo na cabana mais tosca. O povo de lá é apaixonante. Muito receptivo, sempre sorridente. Muita pureza, mas muita pobreza. Ainda tenho vontade de voltar e passar uns dias velejando no lago e acampando nas ilhas. Beijos. Wanda
Legal o comentário, Wanda. Como você morou na África as suas experiências são infinitamente maiores que a nossa. Consigo imaginar que deixou saudades. E também concordo plenamente que o Malawi é realmente lindo e as pessoas são ótimas.
Comecei rindo de seu post, imaginando seu estresse, ante tanto planejamento, diante das situações inusitadas que se apresentam.
Ri ainda mais quando imaginei quem, mesmo vivendo no Brasil, consegue chegar ao Malawi com a intenção de imigrar clandestinamente.
Mas me emocionei com o choque diante de tamanha precariedade.
Muito legal a experiência, amigos.
O povo e o país são lindos. E outra coisa que não contei: apesar da pobreza, a criminalidade é bem baixa por lá.