“… E os horários têm que ser cumpridos. Não podemos prejudicar o grupo todo por causa de alguns. Quem se atrasar vai ser deixado para trás”, foi logo alertando na reunião de apresentação, no seu inglês carregado.
Está bem, o discurso provavelmente não foi exatamente assim (não me recordo bem das palavras; tanta coisa se passou desde então que me parece ter sido em outra vida), mas a cara séria e o ar de poucos amigos geraram um certo desconforto geral, que se notava nos olhares irrequietos.
Esta foi a primeira impressão que tivemos do Raj, guia ou, como agora se fala, líder do nosso grupo na Índia. Carrancudo. Nem uma brincadeirinha, nem um sorriso. Não temos experiência com excursões, mas imaginava que um guia teria uma abordagem mais leve, amistosa, divertida. O que será que vem por aí?
Poucos dias depois nosso líder soltou durante uma conversa, meio que se justificando, que adora o que faz e fica muito feliz de mostrar seu país para os visitantes. E que a expressão séria é um traço cultural do indiano. “O povo não tem hábito de sorrir e isso não deve ser confundido com aborrecimento ou mal humor”. Nossa temporada por lá reforçou esta percepção – não é gente de riso fácil. Mesmo as crianças costumam ter um ar sombrio.
Logo percebemos nossa sorte em contar com o Raj. Com profissionalismo e uma serenidade aparentemente inabalável foi conduzindo nosso grupo através das mais intensas experiências sensoriais, naquele país que não faz concessões para ouvidos, bocas, narizes, olhos nem corações sensíveis. Aos poucos a máscara de xerife durão que vestiu no dia da apresentação (reforçada por seu sério bigode, conjunto que lhe emprestava uns dez anos a mais) caiu por terra, revelando uma pessoa atenciosa e interessante. Até flagramos vários esboços de sorriso, daquele meio tímido, escondido, do tipo “tenho que manter minha fama de mau”. Como na vez que explicava para o grupo as principais madeiras extraídas na região e, gaiato, inclui na lista Bollywood, denominação da indústria cinematográfica indiana.
A postura distante no primeiro contato pode ter algo a ver com traço cultural sim, mas não me surpreenderia que fosse deliberada estratégia de posicionamento, para dar um tom inicial que favorecesse o respeito às regras, condição essencial para o sucesso da viagem.
O trabalho dele é duro. Muito duro. Índia não é para amadores. Marcelo defende que ”o Raj tem o trabalho mais difícil do mundo”. Claro que esta afirmação é um exagero (marca registrada do meu marido), mas seguramente não é moleza. Uma coisa é ser guia no primeiro mundo e com ônibus fretado. Outra totalmente diferente é ter esta profissão na Índia, ainda mais num roteiro desenhado para o visitante conhecer a vida como ela é, incluindo deslocamentos por transporte público no meio da multidão (metrô, trem, tuk-tuk).
Logo no primeiro dia saimos, Raj e seus 13 discípulos, a pé por Nova Deli. Em cinco minutos (cinco minutos!!!) um australiano gente boa, mas totalmente distraído, conseguiu se perder em meio à multidão. Em seguida, resgate efetuado, embarcamos no metrô lotado, homens e mulheres em vagões separados, com o desafio de não deixarmos nenhum pertence ou integrante pelo caminho.
Uns dois dias depois uma australiana animada teve a brilhante ideia de fazer carinho numa vaca que transitava, soberana, pelas ruas de Jaipur. A sagrada criatura julgou ser heresia tal aproximação e foi tirar satisfações. Por pouco não presenciamos uma tourada.
Em outra oportunidade, desviando de carros, motos, tuk-tuks, vacas e até um elefante, uma colega que andava sempre de chinelos tropeçou na rua e se estatelou de cara no chão. Com direito a sangue escorrendo pelo nariz e escoriações.
Turista distraído sendo salvo de atropelamento era cena corriqueira. E teve também corrida pelas ruas procurando banheiro para incautos com piriri (Índia, né?).
Isso sem falar do estresse para embarcar/desembarcar todo o grupo em paradas de trem relâmpago, fugindo dos carregadores de mala que surgiam do nada e quase arrancavam a bagagem da nossa mão. Além do desafio de administrar duas amigas que dividiam quarto e resolveram romper relações no meio da viagem. Teve também turista que ficou ofendida com tratamento machista por parte da gerência de um hotel e exigiu providências. E outra precisando de atendimento odontológico (eu!!!). E várias outras histórias.
Todas as situações foram conduzidas com impressionante habilidade, presença de espírito, jogo de cintura, discrição, pulso forte e amabilidade, na exata medida requerida. Isto além de todos os bastidores da logística da viagem num contexto intrinsecamente desafiador.
No final, tiramos o chapéu para nosso guru indiano. Melhor que esse não há. Ainda bem que a primeira impressão não é a que fica.
6 comentários sobre “Encontrando um guru na Índia”
Comments are closed.
Cê; esqueci de trocar o nome: o comentário anterior era do Carlos Doin. Aqui vai o meu: exagerado. O Marcelo? Imagina… E essa coisa de sensibilidade com a diversidade cultural e mesmo coisa muito sutil e complexa! Melhor observar antes e so imitar os comportamentos ou checar antes de inovar…
Logo vi que era do pai! 😉
Pois é: observar os locais é fundamental.
Bjs
Celina; Gostei de conhecer novos cenários e outros tantos aspectos da nossa Celina, mais sofisticados graças à cultura hindu.
Foi uma experiência intensa. Ter olhos para o diferente nos ajuda a entender melhor o mundo, assim como nós mesmos.
Bjs
A passagem pela Índia marcou mesmo para vocês, a ponte de dar vontade de voltar no tempo e falar de novo sobre ela.
Para o bem ou para o mal, é impossível não ficar marcado pela Índia 🙂