“Vocês têm que mostrar dois pares de sapatos. Nem um, nem três. Dois é o número”. Com essa frase estranha, nosso guia Tawanda iniciou o briefing sobre o que nos esperava no dia seguinte. E assim prosseguia nossa rotina. Normalmente depois do jantar, o guia sentava para conversar conosco e explicar o que teríamos pela frente. Estávamos saindo do Zimbabwe e iríamos cruzar a fronteira de Botswana.
Na África, cruzar fronteiras por terra é sempre uma aventura. Seja pelo prazer do novo carimbo que ganharíamos no nosso passaporte, seja pelo fato que tudo pode acontecer nessas zonas cinzas. Os guias tentam nos preparar com antecedência, mas é impossível prever os procedimentos com exatidão. Às vezes temos que mostrar o certificado de febre amarela, às vezes não. Às vezes temos que preencher formulários, às vezes não. Às vezes seguram nossos passaportes, às vezes não. No final dá certo, mas o que nunca falta na África é emoção. Garantido. Sempre.
Em Botswana, ao contrário dos países por que já havíamos passado, eles não cobram pelo visto o que já é uma boa ajuda. No entanto, como a economia do país é bastante dependente da pecuária, eles são muito estritos com a questão de contaminação animal. Tudo relacionado à doença da vaca louca dá muito ibope lá. E o que os dois (lembrem-se, não pode ser um, nem podem ser três) pares de sapatos têm a ver com isso?
A questão é que todos que cruzam a fronteira de Botswana por terra têm que pisar em um líquido estranho que descontamina os sapatos. E você tem que levar o seu outro sapato na mão para passar no líquido também. O raciocínio deles é que ninguém viaja com apenas um par de sapatos, daí ser obrigatório mostrar outro par de sapatos além daquele que você está usando. Se você mostrar três pares, eles vão inferir que as outras pessoas do grupo também têm três daí vai ser uma revista geral em todas as mochilas do grupo. E serão horas na fronteira.
Acha que a regra não faz sentido? Botswana é um país subdesenvolvido e exige essas besteiras? Ah, é? Tenta entrar com um sapato sujo na Nova Zelândia para ver o que vai acontecer contigo. Pois é, a lógica de um não é a lógica de outro. Temos a enorme tendência de desprezar lógicas que não seguem a nossa. Isso é uma das muitas lições que essa viagem está nos dando.
Voltando à entrada na fronteira, como estou viajando com três calçados, um chinelo, um tênis e um top sider, escondi bem escondido meu top sider no fundo da mochila, calcei o tênis e “vesti” minhas Havaianas falsas da Tailândia na mão (Havaianas, verdadeiras ou falsificadas, contam como sapato nas regras da aduana de Botswana!).
Essa seria nossa primeira entrada em Botswana. Por motivo da disposição geográfica das fronteiras e estradas, tivemos que sair de Botswana, entrar na Namíbia, passar uma noite lá, depois reentrar em Botswana e daí reentrar de novo também na Namíbia. Ou seja, tanto em Botswana como na Namíbia, tivemos entradas duplas e dois carimbos no passaporte. Mas a Namíbia é assunto para outro post.
Na nossa primeira passagem por Botswana o destaque foi Parque Nacional do Chobe. Se eu fosse um animal selvagem, eu moraria no Chobe. Lá tem muitos bichos (ou seja, jantar garantido para os carnívoros), boa vegetação (ou seja, jantar garantido para os herbívoros) e bastante água. Em resumo, literalmente sombra e água fresca para todos. Exemplo de inclusão social animal.
Neste parque fizemos dois games. Um tradicional por 4×4 e outro de barco pelo rio. O resultado? Acho que as fotos contam melhor.
Depois do Chobe, entramos na Namíbia, passamos uma noite lá e voltamos para Botswana.
Ah, pensou que acabaram as histórias de fronteira em Botswana?
Nessa nova passagem, mais uma vez, tivemos que desinfetar nossos dois pares de sapatos, mas desta vez o inspetor local quis verificar o freezer de nosso caminhão e…batata! Batata não, tinha carne lá dentro mesmo. Qual a solução? Nosso cozinheiro, para não ter a carne confiscada, teve que cozinhar ali mesmo toda a comida congelada. Podemos então dizer que tivemos um churrasco na fronteira! Obviamente as três refeições seguintes foram carne, incluindo o café da manhã!
De volta a Botswana, iríamos conhecer um local que eu estava cheio de expectativas: o Delta do Okavango. Normalmente, deltas se formam quando um rio encontra o mar e se formam vários braços de água. O Okavango não é exatamente isso. Ele é formado pelas águas do rio Okavango que desce de Angola e, de acordo com o regime das chuvas, forma grandes áreas alagadiças no território de Botswana. A maior diferença para outros deltas (além da escala) é que, em Botswana, tudo isso acontece a milhares de quilômetros do mar.
Dessa vez ficamos hospedados em um barco hotel no meio do rio. O barco estava longe de ser um luxuoso navio de cruzeiro. Por exemplo, se dois passageiros tomassem banho juntos, um deles (ou os dois!) ficaria com água fria. Esse pequeno desconforto acabou sendo compensado pela pitoresca forma de acomodação e o belo local em que ficou atracado.
Fomos na época das cheias no Okavango, daí não foi tão fácil assim de ver animais. Pelas características locais, a maioria dos game drives daqui são feitos em canoas conhecidas como Mokoros. São canoas super rústicas em que o condutor não rema, mas sim empurra o barco com sua vara de madeira e você fica muito próximo da água. Tem realmente que contar com a habilidade do guia para que a canoa não vire e você não tome um banho (ou, pior, que vire comida de crocodilo!).
Nosso condutor se chamava Diego. Ao questionar o porquê de um nome tão latino no meio da África, ele respondeu com sua lógica de Botswana: “Gosto que me chamem assim por causa do Diego Costa (jogador brasileiro de futebol que se naturalizou espanhol). Meu nome é outro e meio complicado de falar.” E ficamos sem saber o nome de batismo do Diego. Nesse local, ainda bem que o Diego era homem de grande habilidade fluvial e de poucas palavras e não o contrário.
Apesar da dificuldade de se ver animais, conseguimos presenciar uma cena bem inusitada. Dois hipopótamos transando! Fiquei com uma pena danada pois quando notou nossa presença (diga-se de passagem, involuntária) o casal correu para algum lugar mais recolhido. Fiquei imaginando o esforço que hipopótamo teve que fazer para convencer a hipopótama a aguentar 1 tonelada e meia em cima dela. Momento “excitante” da viagem. Mas me deu remorsos de estar ali justamente naquele momento.
No mais, apesar dos poucos animais desta época do ano as paisagens eram surreais. Comprovamos isso quando sobrevoamos o delta para voltar para a “terra firme”. De cima, tivemos o privilégio de ter ainda outra perspectiva da maravilha da natureza que é o Okavango.
No final das contas, vale muito a pena levar dois pares de sapatos para Botswana!
6 comentários sobre “Meus dois pares de sapatos em Botswana”
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Marcelo, muito interessante essa história dos dois pares de sapatos! É sim, a polícia de fronteira da Nova Zelândia é muito severa com possíveis contaminantes! Semestes, farinhas e laticínios são mais abominados que drogas! Mas fiquei curiosa: se você fosse um animal, qual seria? Beijos
Elefante não tem um vida tão ruim não 🙂
Que post legal Cê!!! Mas, 2 parares de sapato para mim seria um desafio louco… ia ser uma dúvida cruel! Já para o Antonio, acredito que estaria na medida certa, sandália papete e tênis.. Mas afinal, a Vaca Louca? Isto adianta algo?
As paisagens realmente são de tirar o fôlego , e os crocodilos também !! Ufa..
Oi, Bela. Como você deve imaginar, muita coisa nesta viagem é um desafio. E isso é um dos prazeres. Aparentemente, o líquido desinfecta os sapatos sim. E acho que não é apenas para vaca louca.
Marcelo, amigo, eu estaria ferrado na fronteira de Botswana. Costumo viajar com 1 sapato apenas, e sem havaianas – apesar dos incansáveis protestos da Luciana. Vivendo e aprendendo. De repente montar uma loja de havaianas na fronteira não deve ser um mau negócio… @Cê, não estou esquecido que amanhã estarás ficando mais experiente. Curta o niver na África!! Abraços!
Parabéns Zéu pela economia de itens na viagem. Podemos dizer com conhecimento de causa que isso é uma super evolução do viajante. E com certeza alguém te emprestaria o segundo par de sapatos 🙂